Cada médico tem seu paciente favorito. Negar isso é mentir para si próprio. Admito que o meu paciente favorito é um homem entre 50 e 60 anos com um humor ácido. Ele vem ao meu consultório há dois anos, mas nunca topou tomar medicação. Na primeira vez, após uma longa conversa, fiz essa proposta e quase apanhei. O homem saiu valente e prometeu nunca mais voltar.
No mês seguinte lá estava ele uma hora antes do combinado na recepção. E assim foi até bem pouco tempo, pois meu paciente favorito nunca confirmava sua ida, dizendo que não via necessidade em ir, mas estava presente uma hora antes do horário combinado no dia marcado. Eu passei a escutá-lo mais e vez por outra falava tangenciando sobre uma medicação quando o seu discurso autorizava, porém era repelido imediatamente.
Quando eu lhe perguntava como estava a vida, ele me respondia: Tão bagunçada quanto o seu cabelo
. Quando a arguição partia para sua vida sentimental, ele me respondia: O senhor tem partes com cartomantes e apresentadores de programas que gostam de juntar casais
. Eu aceitava esse humor cítrico de bom grado e vez por outra retrucava na mesma moeda.
Seguimos então até o mês de maio, quando ele adentrou minha sala com barba por fazer, cara de quem não dormia há várias noites e me intimou: Me dá a merda do teu remédio que eu não vou bem
. Depois de dois anos, ele decidiu que aquele era o seu momento. Perguntei a ele o que seria não estar bem. A resposta veio na lata: Quem não está bem só pode estar mal. Coloca um remédio logo antes que eu me arrependa
. Depois dessas respostas atravessadas o homem falava sobre seu emprego sem estabilidade, das contas que não param de subir, dos dilemas com uma filha mais nova e sua desesperança em relação ao futuro.
Ontem o camarada voltou e eu questionei se ele havia melhorado. A resposta foi sumária: Eu continuo me lascando, só que agora sem chorar
.
Fiquei tonto com a resposta.
- É possível tratar uma doença que se manifesta num sujeito, mas que surge pelas condições socioculturais que o circundam?
- Até que ponto os quadros depressivos e ansiosos são doenças propriamente ditas?
- Seriam eles manifestações individuais de uma crise sistêmica e estrutural da maneira como vivemos e nos relacionamos?
[...]
Tenho repensado muito a minha prática a partir dessas reflexões. Caso não faça isso, virarei um simples prescritor. Quiçá um traficante de drogas legais. Ser médico vai além de saber medicar. Ontem, quando meu paciente saiu, eu falei que havia aprendido muito com a sinceridade dele. A sua resposta foi assim: Então na próxima o senhor me paga a consulta ao invés de eu te pagar. Ando com umas contas atrasadas e vai ser de grande valia
. Sorrimos juntos e eu pude perceber que não foi o remédio o responsável por isso.